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A pandemia do maldizer

Patricia Akester • set. 15, 2021
Partilho artigo hoje publicado no Diário de Notícias, página 16, intitulado «A pandemia do maldizer». Teço considerações sobre a anatomia do maldizer, notando que o exercício da crucial liberdade de expressão não se deve transformar em ofensa pessoal desnecessária e inadequada, circunscrevendo-se, sim, de forma genuína ao direito de manifestar uma opinião. 

Em 2015, disse Umberto Eco que as redes sociais tinham dado voz a “legiões de imbecis” que se encontravam antes restritas “a bares, após um copo de vinho e que não causavam nenhum mal para a colectividade". Soaram duras, então, as suas palavras para quem, como eu, nutre um respeito reverencial pela liberdade de expressão - imprescindível que é na formação e exteriorização de opinião, crenças, pensamentos e ideais. 
Hoje, todavia, perante uma net repleta de insanidades que tomam a forma de fakenews, intolerância, rudeza, intimidação, humilhação e tanta outra loucura, há que concluir que alguma razão tinha o escritor/filósofo, e que enfrentamos não uma e sim duas pandemias: a COVID-19 e a disseminação mundial de uma doença que se espalha de forma contagiante por diferentes continentes e que dá por nome de “maldizer”. Trata-se de uma carga viral, viperina e deletéria, sempre presente, que se acentua claramente em período de campanha eleitoral: a respeito de grandes temas ou de pequenas questões, atinente a instituições ou pessoas, acerca do que está mal assim como sobre o que está bem, com lucidez, justiça, conhecimento e fundamento ou sem tais critérios. Pouco importa. Interessa, sim, falar, “postar” e comentar, sob a forma de crítica, censura, desaprovação, repreensão e condenação, com ar de quem sabe ou mesmo sem ele.

Liberdade de expressão e direito à honra
Esta propensão cultural para a divagação em tom depreciativo é albergada, em Portugal, pela liberdade de expressão que tem assento, e bem em sede de princípios, no artigo 37 da Constituição da República Portuguesa (CRP). O busílis está no facto de que nos dias de hoje a narrativa em causa, por um lado, é por vezes injuriosa, difamatória ou mesmo caluniosa e, por outro lado, tende a ser disseminada nas redes sociais - ficando, pois, imediatamente acessível à escala global, reproduzindo-se qual maleita cancerígena e arruinando potencialmente nomes, reputações e imagens. Estamos perante uma propensão cultural para a maledicência que beneficia de uma plataforma de expressão (as redes sociais) que incentiva uma abordagem casual à comunicação, onde comentários degradantes são triviais, num mundo de opinião não filtrada. E ninguém se encontra imune. As vítimas do maldizer não se resumem a políticos e a celebridades. 
Pergunta-se, então, até que ponto é que a liberdade de expressão é uma prerrogativa sem restrições e como salvaguardar outras garantias fundamentais, designadamente o direito à honra. É que de um lado temos a liberdade de expressão, pilar imperativo de uma sociedade democrática, e do outro temos o direito à honra que o artigo 26 da CRP reconhece como o direito ao bom nome, reputação e imagem e que corresponde a um direito de personalidade alicerçado no princípio basilar da dignidade da pessoa humana.

Fronteiras da liberdade de expressão
A resposta reside na lei internacional e na lei doméstica. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem outorga a liberdade de expressão como direito fundamental no seu artigo 10, decretando, não obstante, no mesmo preceito, que esse direito pode ser submetido a certas restrições ou sanções, para certos fins, tais como a protecção da honra e o artigo 37 da CRP segue, a nível nacional, o mesmo raciocínio. De acordo com essa lógica, são crimes contra a honra previstos e punidos em Portugal, desde 1886, a difamação, a injúria e a calúnia (Capítulo VI do Código Penal (CP), podendo a vítima recorrer à via judicial e invocar tal enquadramento penal. 
Claro que estando em jogo dois direitos constitucionais (a liberdade de expressão e o direito à honra), os tribunais não decretam sentença de prisão ou de multa de ânimo leve. Com efeito, já foi reconhecido por tribunais nacionais da Relação que a ausência de educação, de cortesia ou de gentileza não se traduz em difamação (porque há situações que podendo não ser as mais correctas, adequadas e ajustadas não são necessariamente criminosas), havendo contudo difamação quando o leitor mediano ao ser confrontado com certo conteúdo dele retira manifestamente um significado de achincalhamento, de rebaixamento, de ataque gratuito e de menorização do bom nome e da reputação da vítima. 

Como remover conteúdos difamatórios da net
Sendo o recurso à via judicial uma hipótese, urgente é, em regra, para a vítima a remoção das redes sociais do conteúdo considerado difamatório. Para tal, há que requerer a retirada do mesmo pela rede social em que está publicado. E para que dúvidas não subsistam o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) esclareceu, no âmbito de um litígio que opôs Eva Glawischnig Piesczek à Facebook, que um tribunal nacional de um Estado Membro pode exigir que a gigantesca rede social suprima ou bloqueie o acesso a comentários pejorativos à escala global. O TJUE frisou que a Facebook não está sujeita a uma obrigação geral de vigilância da informação armazenada nos seus servidores, mas tem de eliminar ou impedir o acesso a dados ilícitos quando toma conhecimento da sua ilicitude. No caso em apreço, a deputada austríaca tinha sido apelidada de “traidora”, “corrupta” e “fascista” por um utilizador da Facebook, terminologia que o tribunal austríaco considerou ofensiva e difamatória e que obrigou a rede social a pôr termo à infracção. 

Conclusões
Mecanismos de combate do maldizer à parte, há que notar que uma declaração difamatória pode-se infiltrar nas fendas do subconsciente e esconder-se, por lá, para sempre. A infeliz impressão deixada pela difamação pode durar uma vida. Por conseguinte, importa que o exercício da crucial liberdade de expressão não se transforme em ofensa pessoal desnecessária e inadequada, circunscrevendo-se, sim, de forma genuína ao direito de manifestar uma opinião. Bom mesmo é que quem se manifesta nas redes sociais exerça essa liberdade sem “cólera, malícia, maledicência e palavras torpes” (Colossenses 3:8), considerando de antemão as potenciais consequências das suas palavras e tentando colocar-se no lugar do outro. Por sua vez, quem lê as “cantigas de escárnio e de maldizer” do século XXI nas mesmas redes sociais deve fazer três coisas: pensar, filtrar e nem em tudo acreditar. 

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