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Balanço da liberdade de imprensa após um ano de covid-19: com máscara e açaimo

Patricia Akester • abr. 27, 2021
Partilho um artigo hoje publicado no Diário de Notícias, intitulado «Balanço da liberdade de imprensa após um ano de covid-19: com máscara e açaimo», escrito em co-autoria com Filipe Froes. Acrescento que a liberdade de expressão (com educação, respeito e consideração) me é cara. Fiz pela vida fora múltiplos pareceres para as Nações Unidas sobre o tema, considero que a liberdade de expressão é, a par da liberdade de imprensa, um dos pilares da democracia e em tempos de pandemia a disponibilização de informação colhida responsavelmente, verificada, filtrada e genuína sobre saúde pública, relatada por uma imprensa livre, salva mesmo vidas.

Em 1644, no seu célebre ensaio sobre liberdade de expressão e de imprensa, “Areopagitica”, John Milton declara assertivamente “dai-me a liberdade de saber, de proferir e de argumentar abertamente, acima de todas as outras liberdades”. Isto é, séculos antes da adopção da Declaração Universal dos Direitos do Homem, Milton invoca o que mais tarde (mais precisamente em 1948) o artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem viria a reconhecer como liberdade de expressão: um direito que assiste a todos e que compreende a liberdade de opinião e de procurar, de receber e de transmitir informações e ideias, sem ingerência ou interferência de terceiros. Cedo entendeu Milton, que a “nossa liberdade depende da liberdade de imprensa” (Thomas Jefferson), que os media, em geral, têm um papel fundamental no fornecimento de informação ao público, papel esse que requer autonomia e independência na recolha de dados e na transmissão de mensagem. Feita uma viagem relâmpago aos dias de hoje, delineados que são pela pandemia, constata-se que a referida missão é alvo de um complexo paradoxo. Por um lado, o vírus acentuou a importância dos media tradicionais eleitos que foram pelo público como fontes credíveis e fidedignas sobre a Covid-19 e, por outro lado, as restrições estabelecidas em nome da saúde criaram obstáculos à boa execução dessa tarefa. 

Prenúncio das dificuldades que iriam emergir neste contexto foi o silenciamento do alarmado oftalmologista Li Wenliang (que disse a umas poucas pessoas que 7 pacientes haviam sido diagnosticados com SARS e internadas em isolamento no hospital em que trabalhava) bem como a tortura e a condenação a uma pena de 4 anos de prisão da audaz jornalista Zhang Zhan (na sequência da sua denúncia do novo coronavírus em Wuhan). A China foi precursora no cerceamento da liberdade de expressão relativa à pandemia, mas não sem-igual, tendo sido registados numerosos incidentes pelo globo fora em sede de, entre outras coisas: (i) acesso à informação, (ii) censura, (iii) recurso a procedimentos civis ou penais para restrição da liberdade de imprensa, (iv) atentados contra a integridade física de jornalistas, (v) retórica contra os media e (vi) ausência de protecção de denunciantes/whistleblowers. 

Citemos alguns casos não se vá pensar que se trate de hipérbole:
• Acesso à informação: Por exemplo, em Espanha, na Hungria e na Sérvia as perguntas feitas por jornalistas em conferência de imprensa oficiais sobre a Covid-19 começaram por apenas incluir questões pré-seleccionadas por representantes governamentais; na Arménia a publicação de informação sobre a Covid-19 provinda de fontes não oficiais ficou, subitamente, sujeita a uma multa de €1000, tendo o governo subsequentemente limitado, perante ultraje internacional, o campo de aplicação da referida sanção; no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro aprovou uma medida provisória que estabelecia restrições à Lei de Acesso que foi, todavia, bloqueada pelo Supremo Tribunal; e o processamento de pedidos de acesso a informação tem sido alvo de atrasos em múltiplos países, incluindo na França, na Geórgia, em Itália, na República da Moldávia e no Reino Unido (Background Paper, Conselho da Europa; Parlamento Europeu);
• Censura: Por exemplo, o governo egípcio expulsou uma jornalista do Jornal Guardian que havia tido a ousadia de colocar em causa o rigor dos números oficiais relativos à pandemia e o Supremo Tribunal da Índia ordenou que os media publicassem a versão oficial dos desenvolvimentos da Covid-19 no país (Parlamento Europeu);
• Recurso a procedimentos civis ou penais para restrição da liberdade de imprensa: Por exemplo, na Polónia certa empresa intentou acção contra 2 jornalistas polacos, que inclui um pedido de indemnização de € 1 milhão, pela revelação de que essa empresa havia enviado máscaras para o estrangeiro apesar da grave escassez de máscaras na Polónia; no Zimbábue o jornalista Hopewell Chin’ono foi preso após denúncia de corrupção no âmbito da aquisição de equipamentos de protecção individual (EPI); e no Botswana quem forneça informação sobre a Covid-19 provinda de qualquer fonte que não o governo pode incorrer em pesada multa e/ou até cinco anos de prisão (Background Paper, Conselho da Europa; Internews);
• Atentados contra a integridade física de jornalistas: Por exemplo, jornalistas em Espanha e em Itália foram agredidos enquanto tentavam cobrir manifestações; e, pior ainda, na Chechénia, o presidente Ramzan Kadyrov proferiu ameaças de morte contra a jornalista russa Elena Milashina que havia arrojadamente denunciado violações de direitos humanos executados em nome da saúde pública (Parlamento Europeu; Background Paper, Conselho da Europa);
• Retórica contra os media: Por exemplo, os presidentes do Brasil e da Turquia e o primeiro-ministro da Hungria tendem a incitar ao ódio contra os jornalistas, apelidando-os de delatores, traidores ou mesmo terroristas, tornando, assim, esses profissionais mais vulneráveis a hostilidades tanto no mundo físico como no mundo digital (Media Defence);
• Ausência de protecção de denunciantes/whistleblowers: Por exemplo, na Polónia e no Reino Unido vários profissionais de saúde perderam o emprego quando chamaram a atenção para a escassez de EPI (Background Paper, Conselho da Europa). 

Em suma, governos houve que implementaram determinadas medidas em nome da Covid-19 não para controlar cadeias de contágio e sim de informação, sufocando a imprensa, permitindo a disseminação de desinformação, impedindo o debate construtivo e agravando a situação pandémica. “Pessoas morreram porque certos governos mentiram, ocultaram informação, detiveram jornalistas, ludibriaram o público no que toca à ameaça pandémica (…) pessoas sofreram porque certos governos optaram por fugir à crítica ao invés de promover a partilha de informação quanto ao vírus a par do conhecimento de acções e de omissões governamentais (David Kaye, Relator Especial da ONU para a Liberdade de Expressão). A verdade é que conter a propagação do vírus depende em grande medida do acesso do público a informação precisa, fiável e diversificada, para melhor compreensão do quadro pandémico e para limitação do impacto causado por rumores, mitos e desinformação, assim permitindo que os membros do público tomem decisões de forma mais esclarecida, inteirada e avisada, criando condições para maior aderência às medidas de contenção da Covid-19. 

Tal processo requer, todavia, a prevalência da liberdade de pensamento e de expressão de quem fornece e de quem recebe informação. Nesse sentido cabe a quem manda garantir um ambiente propício para a criação de jornalismo de qualidade, o que passa entre outras coisas pela promoção do célere acesso a informação rigorosa, segura, confiável e fundamentada, pela adopção de providências para acautelar a integridade física dos jornalistas em situações de perigo, pela pronta censura de quaisquer actos de violência contra jornalistas e pela ausência de interferências políticas ou empresariais no campo da orientação editorial. Só deste modo é possível salvaguardar devidamente a independência da imprensa, sem esquecer que “a liberdade de imprensa não é apenas importante para a democracia; ela é a democracia” (Walter Cronkite) e que em tempos de pandemia a disponibilização de informação colhida responsavelmente, verificada, filtrada e genuína sobre saúde pública relatada por uma imprensa livre, salva mesmo vidas. E uma dessas vidas pode ser a nossa.

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