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Implementação da Directiva Mercado Único Digital - Breve Análise - Parte I

Patricia Akester • jul. 03, 2023

A implementação nacional da Directiva Mercado Único Digital (Directiva (UE) 2019/790) lá teve lugar, com enorme atraso (sobre o qual já teci inúmeras considerações) a 19 de Junho de 2023, através do Decreto-Lei nº 47/2023.

 

O novo texto inclui, entre outros preceitos, excepções e limitações adaptadas ao contexto digital e transfronteiriço, um novo direito conexo na esfera dos editores de imprensa (press right), normas relativas à utilização de conteúdos protegidos por prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha, a possibilidade de criação de novo centro de arbitragem em matéria jusautoral, o reforço da protecção dos autores e dos artistas no âmbito dos contratos por eles celebrados de licenciamento ou de transmissão, a redefinição do crime de reprodução das bases de dados que passa a abranger o direito especial do fabricante de bases de dados (e não apenas as bases de dados criativas protegidas pelo direito de autor) e, em matéria de gestão colectiva, a previsão de um prazo para negociação findo o qual as partes podem recorrer à arbitragem (tanto no procedimento colectivo como no procedimento individual) para a fixação de um tarifário.

 

Há consequentemente muito a dizer, ainda que de forma sucinta, pelo que o artigo de hoje apenas incide sobre a matéria das excepções e limitações.

 

Razão de ser das excepções e limitações em geral

Antes de mais, para situar o tema em análise há que esclarecer que a outorga do direito de autor é acompanhada de excepções e limitações a esse direito, as quais consistem em preceitos integrados, nas leis de direito de autor, que restringem o direito de explorar a obra. Tais restrições têm como premissa o papel fundamental das obras literárias e artísticas no plano do estudo, da instrução e do saber. É dessa função de foro cultural e social, desempenhada pelas obras literárias e artísticas, que deriva a colocação de restrições aos direitos exclusivos dos autores, com vista a facilitar o acesso à educação, à cultura e ao conhecimento – mantendo um justo equilíbrio entre os direitos e os interesses dos titulares de direitos, por um lado, e dos utilizadores, por outro. Daí a sua inelutável importância.

 

Motivo da sua reforma no âmbito da DMU

A ideia basilar da DMU é reavaliar e rever as excepções e limitações previstas no direito da UE que sejam relevantes para a investigação científica, a inovação, o ensino e a conservação do património cultural à luz das novas utilizações permitidas pela tecnologia digital - introduzindo excepções ou limitações obrigatórias para a utilização de tecnologias de prospecção de textos e dados no domínio da investigação científica, para a ilustração didáctica no contexto digital e para a conservação do património cultural.

 

O novo quadro nacional de excepções e limitações - Alterações, comentários e questões

Na sequência da implementação da DMU o quadro nacional de excepções e limitações, presente no Código de Direito de Autor e Direitos Conexos, 1985 foi alvo de revisão com a implementação da DMU como segue.

 

·      Mantém-se a excepção relativa à selecção regular de artigos de imprensa periódica, sob forma de revista de imprensa, tendo-se excluído, todavia. a sua aplicação quando o uso tenha por objectivo a obtenção de vantagem económica ou comercial, directa ou indirecta (artigo 75(2)(c)).

Comentário: A exclusão da aplicação da excepção quando o uso tenha por objectivo a obtenção de vantagem comercial, directa ou indirecta, restringe naturalmente o escopo do preceito. Essa alteração não é exigida explicitamente pela DMU, podendo, no entanto, advir implicitamente da regra dos três passos que consta do Considerando (6) da DMU. Segundo essa regra, as excepções e limitações apenas podem ser aplicadas em determinados casos especiais que não entrem em conflito com a exploração normal das obras ou outro material protegido e que não prejudiquem injustificadamente os interesses legítimos dos titulares de direitos. Lembremos que a referência a «certos casos especiais» veda restrições de carácter geral que permitam, por exemplo, a reprodução de qualquer obra, para quaisquer fins, a alusão à «exploração normal da obra» invoca os actos de reprodução que são usualmente exercidos pelo autor, no âmbito da utilização da obra e a menção de um «prejuízo injustificado aos legítimos interesses do autor» impede qualquer restrição que impeça o autor de fruir dos benefícios económicos decorrentes da utilização da obra.

 

·      É autorizado o uso com vista à utilização digital transfronteiriça, para fins exclusivos de ilustração didáctica, sob a responsabilidade de um estabelecimento de educação e ensino (artigo 75(2)(g)).

Comentário: A introdução desta excepção pela DMU visa garantir que os estabelecimentos de ensino, independentemente do nível de ensino, beneficiam de plena certeza jurídica ao utilizar conteúdos protegidos no seio de actividades pedagógicas digitais, incluindo actividades online e transfronteiriças;

 

·      É consentida a prospecção de textos e dados efectuada por organismos de investigação ou por instituições responsáveis pelo património cultural para fins de investigação científica (artigo 75(2)(v)).

Comentário: A adopção pela DMU desta excepção teve presente que a tecnologia em causa torna possível o tratamento de grandes quantidades de informação, promovendo a obtenção de conhecimento e incentivando a inovação, sendo que na UE os organismos de investigação e as instituições responsáveis pelo património cultural sofriam de incerteza jurídica, pré DMU, no que toca à legitimidade dessa actividade. Pretendeu-se eliminar essa incerteza;

 

·      É também admitida a prospecção de textos e dados efectuadas por quaisquer entidades, ainda que com fins comerciais, directos ou indirectos, desde que tal utilização não tenha sido expressamente reservada pelos respectivos titulares de direitos, nomeadamente através de leitura óptica (artigo 75(2)(w)).

Comentário: A adopção pela DMU desta excepção teve em conta que a tecnologia em questão é ainda amplamente utilizada por entidades públicas e privadas para múltiplos outros fins, nomeadamente no contexto de serviços públicos, decisões empresariais complexas e para o desenvolvimento de novas aplicações ou tecnologias. 

Questão: Esta excepção pode ser afastada mediante reserva expressa dos titulares de direitos que pode ser executada, diz o Considerando (18) da DMU, por exemplo, através de metadados, dos termos e condições gerais de um website, de acordos contratuais ou de uma declaração unilateral, sendo que os titulares de direitos deverão poder aplicar medidas para garantir o cumprimento das suas reservas nesta matéria. 

Pergunta-se, pois, se as medidas tecnológicas de protecção do direito de autor, podem ser utilizadas para executar essa reserva. Na prática essa reserva não é de fácil execução podendo porém ser agilizada através do recurso a essas medidas tecnológicas.

Questão: Subsiste aqui um desvio de implementação em relação à letra da DMU, cumprindo perguntar, nessa sequência, se as reproduções e extracções efectuadas nos termos deste preceito podem ser conservadas para além do tempo necessário para fins de prospecção de textos e dados (ao contrário do que decorre do artigo 4 da DMU).

Questão: Esta excepção não foi redigida (a aprovação da DMU ocorreu em 2019) tendo em mente os sistemas de Inteligência Artificial que hoje varrem a Internet no seu todo, recolhendo e regurgitando tanto fontes lícitas como ilícitas, para efeitos de aprendizagem automática - a qual engloba, em traços largos, o treino de um modelo com base numa imensidão de dados, a validação e o ajustamento de parâmetros e a testagem para avaliação do seu desempenho em situações do mundo real. Pode, por conseguinte, surgir violação em sede de direito de autor por via do fornecimento ao algoritmo de aprendizagem automática de dados (que podem incluir textos, imagens, sons etc. protegidos) com vista a permitir que o sistema de Inteligência Artificial reconheça padrões e conexões entre dados, tome decisões precisas, faça previsões e, por último, gere conteúdos. Pergunta-se, pois, se subsiste violação de direito de autor, nomeadamente através da reprodução e/ou adaptação não autorizadas de conteúdos protegidos? Ou se os actos em causa podem ser executados à sombra desta excepção?

 

·      É aprovado o uso para efeito de caricatura, paródia ou pastiche (artigo 75(2)(x)).

Comentário: Aquando da implementação da Directiva Sociedade da Informação esta excepção, então prevista no artigo 5 (3) (k), não foi implementado. Aproximando-se a lei portuguesa, neste campo, do modelo alemão e não consagrando, pois, tais utilizações como excepção ao direito de autor, mas como criações intelectuais, optou-se pela não inclusão da excepção contida na Directiva sobre a Sociedade da Informação. Refira-se, que a implementação da solução prevista no artigo 5 (3) (k) da Directiva sobre a Sociedade da Informação teria eliminado a incerteza jurídica no que toca à licitude de tais utilizações, o que sucedeu desta feita – tendo em contrapartida a paródia deixado de consistir em obra protegida;

 

·      É permitido o uso por parte de instituições responsáveis pelo património cultural para efeitos de conservação desse património (artigo 75(2)(y)).

Comentário: A DMU pretende apoiar as instituições responsáveis pelo património cultural na conservação das suas colecções para gerações futuras, permitindo que estas realizem reproduções de conteúdos protegidos que façam permanentemente parte das suas colecções para fins de conservação, para fazer face, por exemplo, ao problema da obsolescência tecnológica ou da degradação dos suportes originais ou para preservar essas obras e outro material protegido.

Em termos de técnica legislativa, assiste-se nesta transposição a uma duplicação de conceitos legais que poderá causar dúvidas interpretativas, pois o artigo 75(2)(e) já autorizava (e continua a fazê-lo) a execução dos actos de reprodução necessários à preservação e arquivo de quaisquer obras por bibliotecas, arquivos e museus públicos e centros de documentação não comerciais.

Mais, o referido artigo 75(2)(e) é acompanhado da previsão, no artigo 76(2)(b), de uma remuneração equitativa que pré-implementação era atribuída ao autor e, no âmbito analógico, ao editor, sendo pós-implementação atribuída ao autor e ao editor.

Questão: Pergunta-se, assim, se a manutenção dessa remuneração equitativa contraria o Considerando (17) da DMU que apenas autoriza os titulares de direitos a receberem uma compensação equitativa pelas utilizações digitais no âmbito da excepção destinada à ilustração didática?


·      Mantém-se o artigo 75(2)(i) que permite a inclusão de peças curtas ou fragmentos de obras alheias em obras próprias destinadas ao ensino e que continua a ser acompanhado da previsão, no artigo 76(1)(c), de uma remuneração equitativa que continua a ser atribuída ao autor e ao editor.

Questão: Tal como acima cumpre apurar se a manutenção dessa remuneração equitativa contraria o Considerando (17) da DMU que apenas autoriza os titulares de direitos a receberem uma compensação equitativa pelas utilizações digitais no âmbito da excepção destinada à ilustração didática.

 

·      Mantém-se a imperatividade das excepções constante do artigo 75(5).

Comentário: Sabendo-se que a liberdade contratual pode ser cerceada através da fixação unilateral de cláusulas e condições contratuais, e para obstar a que na prática se esvaziem de conteúdo as excepções e limitações previstas na lei, o artigo 75(5) ordena a nulidade das cláusulas contratuais que impliquem a renúncia ou impeçam, na totalidade, a existência das utilizações livres tipificadas na lei.

 

Conclusões

Apesar de minimalista, a implementação nacional da DMU revela, no campo das excepções e limitações, desvios em relação a essa directiva, questões e incerteza jurídica.

Tendo o processo de transposição da DMU para o território nacional sido inexplicavelmente longo, não se espera que o legislador português proceda de imediato à sanação dos problemas identificados.

Espera-se, contudo, que proceda à avaliação contínua do processo de implementação, que obtenha feedback por parte de estabelecimentos de educação e de ensino, de organismos de investigação, de instituições responsáveis pelo património cultural, da comunidade em geral e, last but not least, dos titulares de direitos.

A monitorização do funcionamento do quadro de excepções e limitações é crucial para identificar desafios, preencher lacunas, alcançar maior certeza jurídica e um alinhamento mais elevado com a DMU – garantindo-se nesse processo um justo equilíbrio entre os direitos e os interesses dos titulares de direitos, por um lado, e dos utilizadores, por outro, bem como o devido funcionamento do mercado interno.


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