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Nevermind

Patricia Akester • ago. 26, 2021
NEVERMIND

Falei há pouco com o jornalista Paulo Ferreira, na Rádio Observador, sobre o processo Elden versus Nirvana et al, em que Spencer Elden, o homem que apareceu em bebé nu na capa do álbum “Nevermind”, intenta acção contra os membros da banda Nirvana e outros, alegando pornografia infantil e pedindo elevada indemnização por danos morais

Perguntou o Paulo Ferreira se o caso tem pernas para andar nos EUA e como seria em Portugal, o que me obrigou a colocar várias questões. Aqui partilho as minhas reflexões preliminares, escritas de rajada.

Cronologia:
• A imagem foi captada com o consentimento dos progenitores da criança que receberam 200 USD pelo uso da fotografia, no âmbito de um contrato verbal
• Durantes 3 décadas não foi intentada qualquer acção judicial
• Aliás o jovem Elden fez 3 recreações da imagem e afirmou mais que uma vez, quando entrevistado, que havia obtido benefícios (por exemplo, em sede de relacionamentos amorosos e de contactos para fins profissionais) com a divulgação da sua imagem na famosa capa 
• Alega agora que o uso da sua imagem no álbum dos Nirvana é ilícito e intenta acção 

A acção alega:
• Que o uso da imagem monta a pornografia de menores
• Que o uso gerou graves danos emocionais para o jovem Elden 
• Requer ressarcimento: $150,000 a ser pago por cada um dos 15 arguidos, que incluem 2 membros da banda, a ex mulher de Cobain, Courtney Love e o fotógrafo Kirk Weddle. 

Há que perguntar o seguinte:

Trata-se de pornografia de menor?
• Não vejo que esteja presente o ilícito penal mencionado pois diz a lei federal norte americana que monta a pornografia infantil qualquer imagem de acto sexualmente explícito que envolva um menor
• E em Portugal chegaríamos, penso, a igual conclusão pois a pornografia de menores assenta (explica a doutrina) em material que represente menores em comportamentos sexualmente explícitos  
• Para além de apurar se o acto ilícito está presente ou não, há que ter em conta o estado mental de quem o pratica (mens rea). Por exemplo, uma mãe que tira uma foto do primeiro banho do filho e a coloca nas redes sociais pode ser incauta mas não pratica um acto de pornografia de menores

Houve violação do direito à imagem?
• Nos EUA esta alegação não é "straightforward". Há que ter em conta que o reconhecimento do direito à imagem varia de Estado para Estado e que a liberdade de expressão é, neste contexto, consideração fundamental. Por exemplo, em 2006 no processo Nussenzweig v. DiCorcia foi determinado judicialmente, em Nova York, que o direito à imagem é restringido pela Primeira Emenda à Constituição que postula precisamente a liberdade de expressão 
• Em Portugal, a Constituição consagra o direito à imagem (artigo 26(1)) e o Código Civil estabelece o direito a não ser fotografado bem como o direito a não ver divulgada a sua fotografia (artigo 79). Como tal, o direito à imagem é violado sempre que a captação e a divulgação não forem precedidas do consentimento da pessoa retratada (notemos que existem excepções que têm a ver, entre outras coisas, com a notoriedade ou cargo ocupado pela pessoa retratada). Todavia, de acordo com as regras gerais (do Código Civil) o consentimento pode ser tácito ou expresso, verbal ou escrito 
• No caso em apreço foi dado consentimento verbal, havendo apenas que realçar a importância de fazer registo escrito do consentimento para efeitos de prova. Isto é, o consentimento não deixa de existir se não for reduzido a escrito, sendo no entanto mais difícil fazer prova

Há lugar a ressarcimento?
• Aqui há que lembrar que no ordenamento jurídico norte americano existem os chamados danos punitivos que pretendem ter uma função ressarcitória e punitiva e que podem, por conseguinte, gerar indemnizações de milhões de dólares. Posto isto, a verdade é que a concessão do elevado montante requerido por Elden exige "emotional distress damages" causado por pornografia de menores - o que não me parece ser o caso, conforme disse acima
• Também em Portugal os danos relevantes podem ser danos não patrimoniais (por exemplo o desgosto e sofrimento psicológico). Contudo torna-se necessário para obtenção de indemnização (independentemente da natureza dos danos) que estejam presentes certos requisitos que neste caso não detecto: a violação ilícita de um direito, com dolo ou negligência, a existência de danos e um nexo de causalidade entre o facto e o dano (artigo 483 do Código Civil)
• Basicamente não tendo sido praticado um acto ilícito não vejo como pode haver lugar a ressarcimento

Conclusões:
• Há aqui uma tentativa de aproveitamento económico 
• Pela minha parte (e sei que muitos concordarão comigo) já olhei tantas vezes para a capa desse álbum e nunca vislumbrei senão um bebé a nadar
• Ver mais que isso requer uma mente muito maliciosa no âmbito de um panorama cultural emergente (que me deixa perplexa) e que permite, entre outras coisas, a eliminação da História e a restrição injustificada da liberdade de expressão artística 

É caso para dizer: Nevermind ...

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