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A destruição do património cultural ucraniano como crime de guerra

Patricia Akester • out. 04, 2022

Partilho a minha coluna de Outubo, no Dinheiro Vivo, Diário de Notícias, intitulada «A destruição do património cultural ucraniano como crime de guerra».


«Devemos salvaguardar o património cultural ucraniano como testemunho do passado e como catalisador de paz e de coesão para o futuro» (Audrey Azoulay, UNESCO)

 

É sabido que as tropas russas têm deixado um lastro de terror e de atrocidade por onde na Ucrânia têm passado, assente em tortura, violação, deportação, despovoamento, assassinatos em massa e noutros actos igualmente bárbaros. Menos referido será porventura o facto de que a Ucrânia luta não apenas pela sobrevivência do seu povo e pela preservação das suas fronteiras territoriais, mas também pela conservação da sua história, da sua música, da sua literatura, dos seus filmes, dos seus monumentos, etc.  

 

Para Putin a Ucrânia não é um Estado soberano, a língua ucraniana não passa de um dialecto russo e os russos e os ucranianos são um só povo. Daí a intencional obliteração, em território ucraniano, de teatros, bibliotecas, igrejas, museus e de outros locais de natureza cultural. Em Julho de 2022 (e muito mais terá sido destruído, entretanto) a UNESCO detectou graves danos em mais de 164 locais de foro cultural: 72 de natureza religiosa, 12 museus, 32 edifícios históricos, 24 edifícios dedicados a actividades culturais, 17 monumentos e 7 bibliotecas. Para os ucranianos a defesa do seu património cultural converteu-se em mais um campo de batalha; noutra linha vital de defesa.

 

Não há conflito bélico que não coloque em perigo o património cultural nos locais pelos quais se arrasta – lembremos a trágica onda de destruição cultural que varreu a Ásia Central (Afeganistão), o Médio Oriente (Iraque e Síria) e a África Ocidental (Mali) - mas os danos sofridos na Ucrânia não são meros danos colaterais. A agressão russa visa erradicar a essência ucraniana até que nada reste da sua alma cultural, da sua identidade nacional, da sua memória histórica.

 

Estamos perante mais uma violação russa das normas de Direito Internacional que estabelecem regras claras no que toca à protecção tanto de civis como de bens culturais, violação essa que atinge no seu âmago o conceito de imunidade de tais bens em tempos de guerra.

 

Coube à Convenção de Haia de 1899 estabelecer, no plano internacional, a obrigação de salvaguarda e de respeito pelo património cultural dos povos. Seguiu-se a Convenção de Haia de 1954, criada na sequência da 2ª Guerra Mundial, fruto do reconhecimento de que as operações militares causam com frequência perdas irreparáveis para a memória cultural da humanidade. Esta Convenção (de que que tanto a Rússia como a Ucrânia são Estados Membros) impõe a protecção de bens culturais contra a destruição e o saque durante conflitos armados e o seu Segundo Protocolo (que monta a 1999) abrange a punição de violações graves à Convenção (como roubo, pilhagem, investidas e actos de vandalismo contra bens culturais). Acresce que a noção de destruição intencional de bens culturais como crime de guerra é explanada na Resolução 2347 do Conselho de Segurança da ONU de 2017.

 

Foram estas normas internacionais que permitiram, por exemplo, que o Tribunal Penal Internacional (TPI) condenasse, em 2004, o último Comandante da Marinha Jugoslava, Miodrag Jokić, a 7 anos de prisão pela destruição intencional de bens culturais (e por outros actos) e, em 2016, o professor maliano e jihadista, Ahmad Al Faqi Al Mahdi, a 9 anos de prisão pela destruição intencional de 10 monumentos religiosos e históricos em Mali. O jihadista havia arquitectado a destruição desses bens culturais. Foi a primeira vez que o TPI reuniu para se pronunciar apenas sobre a destruição de património cultural e que essa destruição foi qualificada como crime de guerra.

 

No caso da Ucrânia, a comunidade internacional terá de lidar, na devida altura, com os múltiplos crimes de guerra que têm sido cometidos no âmbito da invasão russa. Por ora, é imperativa a continuada assistência às instituições ucranianas para garantir a presença dos seus tesouros culturais em futuro processo de reconstrução e cura. Dado o objectivo de Putin - varrer a Ucrânia do mapa como nação, eliminando a sua língua, o seu património cultural e outros traços de identidade nacional - não é possível ignorar a dimensão cultural do conflito. 


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