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A propriedade intelectual como arma bélica

Patricia Akester • abr. 01, 2022

Partilho a minha coluna de Abril no Dinheiro Vivo, Diário de Notícias, intitulado «A propriedade intelectual como arma bélica».

 

Aumento do preço dos combustíveis, imagens dramáticas, narrativas tocantes uma crise de refugiados de contornos inéditos e o espectro de uma guerra nuclear que parecia ter vanescido com o fim da Guerra Fria, são algumas das marcas que, como todos sabemos, o conflito na Ucrânia traçou em poucas semanas. Não será talvez de conhecimento geral que a resposta russa às sanções dos aliados incluiu uma vítima inesperada, sob a forma de um ataque à Propriedade Intelectual (PI) dos aliados e que merece constatação e análise neste mês em que se celebra o Dia Internacional da PI.

 

Ataque russo à Propriedade Intelectual dos aliados

Perante as sanções económicas dos aliados e do movimento de retirada de empresas multinacionais do solo e do mercado russos, Moscovo contra-atacou através de 2 iniciativas legislativas de assalto à PI dos aliados: (i) o decreto nº 299 que permite que o governo russo ordene o licenciamento compulsório de PI proveniente de países considerados “hostis” (incluindo os 27 Estados Membros da União Europeia - UE), PI essa que pode ser usada à força e sem contrapartida monetária; e (ii) a lei federal nº 46-FZ segundo a qual qualquer PI registada na Rússia pode ser declarada inválida e utilizada livremente pelo Estado russo.

A Rússia retaliou, causando prejuízos aos aliados e suavizando, sob a perspectiva da respectiva população, o impacto das medidas ocidentais. Assim, por exemplo, tendo as plataformas de streaming, como a Netflix, bloqueado a prestação de serviços nesse país, os cidadãos russos podem recorrer a plataformas piratas para visualização de filmes e de séries.

A legislação em causa incentiva muitas outras violações de PI (para além do uso de torrentes), como a instituição de negócios sob a égide de marcas ocidentais (exemplo: restaurantes com a marca MCDONALD’S ou STARBUCKS) e a execução e venda de cópias piratas de certos produtos em embalagens e com marcas registadas pertencentes a empresas ocidentais (exemplo: software com a marca MICROSOFT) - sem autorização dos legítimos detentores da PI em causa e sem que estes sejam remunerados.

Ilustrativa desta nova orientação política no campo da PI é a recente decisão de um magistrado russo (Andrei Slavinske) que arquivou um processo que tinha sido intentado por uma empresa britânica responsável pela produção de uma série infantil (Peppa Pig) e que afirmou, sem hesitação, que as “acções hostis dos Estados Unidos da América (EUA) e dos seus aliados” haviam influenciado a sua decisão (The Independent).

 

Queixa à Organização Mundial do Comércio

Se esta táctica for alvo de queixa perante a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Rússia alegará, em princípio (à sombra de uma excepção contida no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio - Acordo TRIPS) que tomou as acções que considerou necessárias para protecção de interesses essenciais de segurança, em tempo de guerra. 

Não se trata de terreno jurídico dotado de resposta pronta e fácil. Por sinal, a única decisão que clarifica o tema tem na sua base uma contestação da Ucrânia em relação a medidas restritivas impostas pela Rússia na sequência da invasão da Crimeia. O desfecho foi então favorável à Rússia, uma vez que a OMC concluiu que a Rússia tinha implementado medidas com o mínimo de legitimidade, no âmbito de uma situação de emergência reconhecida por ambas as partes e visando tutelar interesses atinentes à sua segurança nacional (Russia - Measures Concerning Traffic in Transit - DS512).

Não é provável que, dadas as circunstâncias actuais, a OMC penda novamente para Moscovo. Contudo, se a Rússia for expulsa da OMC, como já foi requerido (sendo que não subsiste normativo que alicerce o pedido, que se funda, aliás, mais em matéria de segurança e de direitos humanos que na violação de regras de foro comercial) o ataque russo à PI não pode sequer ser apreciado por essa entidade.

 

Consequências tangíveis

Reconheçamos que o uso da PI como arma económica não é algo de inédito. Com efeito, aquando da 1ª Guerra Mundial os EUA promulgaram uma lei (Trading With the Enemy Act) que procedeu à apreensão da PI do inimigo. Nessa sequência, a Bayer, empresa alemã, viu confiscada a sua patente relativa à ASPIRINA, foi proibida de usar a marca correspondente (por ser “propriedade inimiga”) e só em 1994 conseguiu restabelecer os seus direitos em território norte-americano (Smithsonian Magazine).

Desta vez, estratégia bélica similar afecta o Ocidente no seu todo, podendo gerar prejuízos assustadores (para titulares de direitos, investidores e accionistas) e ameaçar a inovação, a criação intelectual e o investimento em sede de empreendedorismo.

É que os direitos de PI protegem o cerne da empresa, a inovação, impedindo que os concorrentes simplesmente a copiem, obrigando-os a pagar pela utilização da produção intelectual em causa e permitindo, ainda, o recurso à via judicial e a obtenção de ressarcimento em caso de violação de direitos. Mais, a PI pode: elevar o valor comercial da empresa (no contexto de operações de investimento, de financiamento, de fusão e de aquisição), sustentar um incremento no preço de produtos (por lhes conceder características exclusivas), levar a um acréscimo de vendas (em função dessas características exclusivas e indisponíveis no quadro da concorrência), ser fonte de royalties, multiplicando assim as receitas da empresa, ser utilizada para criar alianças, interoperabilidade ou promover certa tecnologia e ser invocada estrategicamente se a empresa for acusada de violar a PI de outra empresa.

Para os aliados, cuja riqueza assenta em larga medida na produção intelectual e no ecossistema que a protege (da PI derivam cerca de 30% dos postos de trabalho na UE e cerca de 45% do PIB da UE – European Intellectual Property Office) trata-se de uma investida que terá, não nos enganemos, nefastas consequências económicas.


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