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Balanço do acesso à vacina após um ano de covid: "alguns são mais iguais do que outros"

Patricia Akester • abr. 01, 2021
Partilho um artigo hoje publicado no Diário de Notícias, intitulado «Balanço do acesso à vacina após um ano de covid: alguns são mais iguais do que outros», escrito em co-autoria com Filipe Froes: pneumologista, consultor da DGS, coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Médicos e membro do Conselho Nacional de Saúde Pública.

O percurso trilhado ao longo do último ano em sede de acesso à vacina evoca a evolução do 7º mandamento do clássico literário, “A Revolução dos Bichos”. Nessa obra o autor britânico, George Orwell, começa por instituir a equidade como mandamento, mandamento este que sofre forte desvios ao longo da sátira. Ora, declarada a pandemia, conceptualmente, foi o mandamento orwelliano (na sua versão não desvirtuada) que a Organização Mundial de Saúde (OMS) aduziu quando afirmou que o combate à Covid-19 devia ter por base princípios de solidariedade, de cooperação e de assistência a nível internacional, princípios esses que reitera com constância. Volvido um ano ciente está a OMS de que, na realidade, enquanto nos países desenvolvidos o processo de vacinação contra a Covid-19 está em marcha, a velocidades diferentes é certo, na maior parte dos países em desenvolvimento nem uma vacina foi até hoje administrada. Tedros Adhanom Ghebreyesus (DG da OMS) admite mesmo que “o mundo está à beira de uma catástrofe moral” (CNBC).

Na raiz dessa iniquidade subsiste um conflito entre a saúde pública e os direitos de propriedade intelectual. A verdade é que a vacinação contra a Covid-19 se traduz no exercício de um direito fundamental, atento o facto de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece, entre outros direitos, o direito à saúde como corolário do direito à vida. Por sua vez, os Direitos de Propriedade Intelectual (DPI) conferem direitos exclusivos de utilização, de produção e de comercialização, funcionando como mecanismos de incentivo/recompensa do elevado investimento requerido para a investigação e para o desenvolvimento de processos e de produtos farmacêuticos. Tais monopólios, que em circunstâncias normais fazem todo o sentido, estão a criar graves obstáculos na luta contra a Covid-19 em países em desenvolvimento.

Note-se que não é a primeira vez que surge um conflito entre a protecção da propriedade intelectual e o acesso a medicamentos. Há cerca de 2 décadas viveu-se dilema semelhante no que toca ao acesso aos medicamentos contra a SIDA, dilema esse que culminou, em 2001, na aprovação por unanimidade de todos os Estados Membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) da Declaração de Doha - a qual permite a adopção de certas medidas para garantir o acesso a tais medicamentos (por exemplo, licenças compulsórias em sede de epidemia). Actualmente a questão incide sobre a Covid-19, tendo a Índia e a África do Sul proposto, no âmbito da OMC, medidas temporárias que vão para além das flexibilidades contidas na Declaração de Doha (considerando as especificidades impostas pelos testes e tratamentos antivírus). A proposta foi rejeitada, entre outros, pelos EUA, pelo Reino Unido e pela União Europeia, que acentuaram designadamente, que (i) o Acordo que rege os aspectos dos DPI relacionados com o comércio (Acordo TRIPS) já contém mecanismos destinados a facilitar o acesso a medicamentos, tais como a possibilidade de emissão de licenças compulsórias para fabrico de medicamentos ou para importação dos mesmos caso o país em questão não tenha capacidade de produção; (ii) o objectivo em causa pode ser alcançado por outras vias, como o mecanismo COVAX, que é financiado por países desenvolvidos e visa garantir o acesso universal às vacinas contra a Covid-19; e (iii) a atribuição de DPI permite a justa recuperação do investimento feito pela indústria farmacêutica e assim fomenta a investigação e o desenvolvimento de novos fármacos, pelo que o afastamento desses direitos, ainda que transitório, pode prejudicar o processo de inovação. Sucede que os argumentos apresentados sucumbem quando escrutinados. Senão vejamos.

Licenças compulsórias
As licenças compulsórias afiguram-se à primeira vistas ideais requerendo contudo (i) vontade política por parte de alguns países em desenvolvimento no sentido de implementação das flexibilidades contidas no Acordo TRIPS na legislação nacional; (ii) o ritmo do processo em causa não se coaduna com a natureza da emergência (por exemplo, o Ruanda só ao fim de mais de 4 anos conseguiu ter acesso a um medicamento genérico contra a SIDA); (iii) o titular da patente tem de ser adequadamente remunerado de acordo com o valor económico da autorização, deixando o Acordo TRIPS por saber a que monta essa remuneração; (iv) o fabrico é executado em quantidades predefinidas na licença compulsória, podendo não suprir necessidades não contempladas na mesma; (v) não pode ser ignorada a possibilidade de se alienar a Indústria farmacêutica (por exemplo, de acordo com a Reuters, a Tailândia procedeu ao licenciamento compulsório para produção ou importação da versão genérica do medicamento Kaletra, contra a SIDA, e os Laboratórios Abbott anunciaram, nessa sequência, que não iriam vender novos fármacos nesse país); (vi) last but least, a obtenção de uma licença compulsória para fabrico das vacinas mRNA de pouco serve, uma vez que a sua produção exige uma transferência de know-how. A OMS bem criou o chamado COVID-19 Technology Access Pool (C-TAP), para partilha de know-how, o qual se encontra absolutamente desguarnecido.

Recuperação do investimento feito
Por via de regra, a investigação e o desenvolvimento (I&D) de processos e de produtos farmacêuticos postulam investimentos vultuosos, morosos e repletos de riscos. Todavia, desta feita houve lugar não apenas a um investimento da indústria farmacêutica, mas também de Governos (GBP 6,5 biliões) e de entidades sem fins lucrativos (GBP 1,5 biliões), distribuídos, conforme dados da Airfinity, como segue: GBP 8,19 biliões para I&D da AstraZeneca; GBP 2,25 biliões para I&D da Pfizer-BioNTech; GBP 1,9 biliões para I&D da Moderna; GBP 1,79 biliões para I&D da Novavax; GBP 1,62 biliões para I&D da SinoVac; GBP 1,25 biliões para I&D da CureVac; GBP 786 milhões para I&D da Johnson & Johnson; GBP 572 milhões para I&D da Sanofi/GSK; e GBP 300 milhões para I&D da Sanofi Translate Bio.

COVAX 
Tendo o mecanismo COVAX prometido aproximadamente dois biliões de doses de vacinas a 190 países em desenvolvimento, a 2 de Março deste ano o mesmo mecanismo havia apenas fornecido 237 milhões de doses da vacina AstraZeneca, fabricada pelo Serum Institute, India (SII/AZ), a 142 países participantes (OMS). Inocular uma população mundial de perto de 7,8 biliões não é tarefa fácil, de tal modo que segundo a Bloomberg estão a ser administradas sensivelmente 6,67 milhões de vacinas e a esse ritmo serão necessários à volta de 4,6 anos para inoculação de 75% da população (com uma vacina que exige um percurso vacinal de duas doses) e alcance de um nível significativo de imunidade de grupo à escala internacional … 

Conclusões
O acesso à vacinação não está a ser equitativo pelo mundo fora, ou seja, apelando de novo a Orwell é inescapável que “todos são iguais, mas alguns são mais que outros”. A solução mais eficaz é controversa, pois invoca valores diversos: por um lado, o interesse público no acesso aos medicamentos, baseado no direito à saúde e, por outro lado, a defesa de interesses privados através da protecção dos DPI. Polémica à parte, tendo em vista os riscos e os danos causados pelo vírus, justifica-se o ajuste casuístico do modelo de protecção dos DPI em nome do bem maior e o bem maior é, indiscutivelmente, o direito à saúde, que decorre por sua vez do direito à vida. Reiteramos que a tutela dos DPI é merecida e deve, em circunstâncias normais, ser plena. No entanto, no âmbito de uma crise global, há que rever e adaptar. E se não o fizermos agora, para esta e para futuras pandemias, quando o faremos?

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