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Em nome da saúde. Retrato da democracia após um ano de covid

Patricia Akester • mar. 23, 2021
Partilho um artigo hoje publicado no Diário de Notícias, intitulado «Em nome da saúde. Retrato da democracia após um ano de covid», escrito em co-autoria com Filipe Froes: pneumologista, consultor da DGS, coordenador do Gabinete de Crise COVID-19 da Ordem dos Médicos e membro do Conselho Nacional de Saúde Pública.

“Democracy's a very fragile thing.” (Sam Shepard)

A declaração de pandemia emitida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em função dos “níveis alarmantes de propagação e de inacção”, como que invocou “O Grito” do pintor norueguês Edvard Munch, tendo colocado as entidades governamentais sob forte pressão. Nessa sequência, foram implementadas pelo mundo fora medidas que há não muito tempo seriam consideradas inconcebíveis em Estados democráticos, tais como, confinamentos, recolhimento obrigatório, encerramento de estabelecimentos de ensino, uso compulsório de máscaras, sistemas de contact tracing, etc. Por conseguinte, o ano transacto consistiu num ano insólito e inusitado, obrigando a apurar, sobretudo porque a pandemia está longe de ter cessado, até que ponto as referidas medidas lesaram a democracia a nível global. 

Reconhecidamente, mudar o curso da pandemia exige detecção, testagem, tratamento, isolamento, rastreamento e mobilização colectiva em sede de resposta, isto é, demanda a imposição de princípios de saúde pública que visam a salvaguarda da saúde individual e assentam na intervenção crítica de prevenir e controlar a transmissão do agente infecioso. Em tais casos, o sacrifício do individuo, feito em nome da saúde pública e em cumprimento dos requisitos científicos e legislativos aplicáveis, é válido, pertinente e adequado. O infortúnio advém do recurso à situação pandémica para fundamentação de regras que cerceiam despoticamente processos democráticos através, por exemplo, do controle da disseminação e do acesso à informação, da perseguição, inter alia, de adversários políticos, de jornalistas e de profissionais da saúde, do adiamento de eleições, etc. E como bem disse António Guterres, Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), "isso é especialmente perigoso em lugares onde as raízes da democracia são superficiais e os freios e contrapesos institucionais são fracos".

A verdade é que a pandemia gerou ou acentuou, consoante o País em questão, desordem política. Sabemos que na China, Li Wenliang, o médico que fez soar o alarme relativo ao surgimento de um novo vírus semelhante à SARS por meio de uma publicação que se tornou viral, foi interrogado e silenciado e que o “Diário de Wuhan”, obra literária de Fang Fang, que continha o registo do austero confinamento em Wuhan, foi alvo de censura e de proibição.

Porém, a preocupação deve, neste campo, ir bem para além da China. Com efeito, a pandemia trouxe consigo múltiplos actos opressivos, autocráticos ou simplesmente arbitrários, tomados em nome da saúde pública, tais como: (i) um agravamento da violência policial contra a população civil, sobretudo em enquadramentos parcamente democráticos; (ii) a outorga de poderes políticos excepcionais, para além do razoavelmente necessário (por exemplo, a 30 de Março de 2020 o Parlamento Húngaro aprovou a Lei Coronavírus obsequiando o Governo, chefiado por Viktor Orbán, com certos poderes por indeterminado período de tempo); (iii) interferências sofridas no seio do poder judicial (por exemplo, na Guatemala e na Sérvia); (iv) a imposição de restrições, sem precedentes, a adversário políticos (por exemplo, no Cazaquistão e no Camboja); (v) a negação da existência do vírus por entidades governamentais (por exemplo, na Nicarágua e no Turquemenistão); (vi) a promoção de tratamentos perigosos ou não atestados pela ciência (por exemplo, no Brasil e na Tanzânia); (vii) corrupção relativa à atribuição de subsídios (por exemplo, na Mauritânia); (viii) a concessão de contratos públicos a entidades não licenciadas para o efeito (por exemplo, na Bósnia e na Herzegovina); (viii) o adiamento de eleições e/ou a ausência de observação do processo eleitoral, observação essa requerida para garantia da sua integridade (por exemplo, no Sri Lanka, no Burundi, na Bielorrússia, na Etiópia, na Bolívia e em Hong Kong); e (ix) a interrupção de funções parlamentares (New Freedom House). Até em Portugal, benevolente jardim à beira-mar plantado, embora se tenha tentado manter a actividade parlamentar, foram suspensas as intervenções bimensais do Primeiro-Ministro na Assembleia da República, durante as quais os partidos da oposição tinham a possibilidade de colocar questões ao Chefe do Governo. 

Em contrapartida, como notaram os Comissários Europeus Josep Borrell e Dubravka Šuica, "em todo o mundo, as pessoas continuam a demonstrar, muitas vezes com grande risco pessoal, o seu anseio pela democracia. De Hong Kong ao Líbano, da Bielorrússia ao Sudão.” Meramente a título de exemplo, na Bielorrússia protestos em massa deram origem a um robusto movimento a favor de reforma política; o Supremo Tribunal Brasileiro bloqueou uma medida provisória mui acarinhada pelo Presidente Jair Bolsonaro que estabelecia restrições à Lei de Acesso à Informação; e, não esqueçamos, que muitos jornalistas continuam a arriscar, obstinadamente, a sua liberdade e a sua segurança para reportar abusos, despotismo e prepotência onde estes prevalecem no presente contexto pandémico.

Contudo, por meritórios que estes esforços sejam, na ausência de acção coordenada e concreta no plano internacional, o problema persiste com sequelas. Por ora, a pandemia continua a assolar o mundo, normas autoritárias tomadas em nome da Covid-19 permanecem em vigor, a sensação de crise democrática perdura e a fragilidade democrática dificulta, como ilustrámos acima, a luta contra o infatigável vírus. 

A questão seguinte é quão viável será eliminar o legado jurídico da pandemia, nos seus contornos não democráticos, finda a mesma. A resposta é que o processo de extinção desse legado normativo será mais simples e incomplexo em certos países e mais difícil ou quase impossível de reverter noutros. Isto é, esgotado o perigo decorrente do vírus SARS-CoV-2 seguir-se-á uma outra ameaça, um outro “vírus” que poderá varrer grande parte do globo sob a forma de uma recessão democrática. E tal resultado pós pandemia não é aceitável, tendo a comunidade internacional de clamar, como fez o General francês Robert Nivelle aquando da maior e mais longa batalha da Primeira Guerra Mundial na Frente Ocidental: “Ils ne passeront pas”, lembrando que o declínio da democracia nos fragiliza a todos, sob múltiplos aspectos, incluindo no combate a futuras pandemias. 

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