Je suis: mulher em trevas de Afeganistão
Patricia Akester • 20 de agosto de 2021

Partilho artigo hoje publicado no Diário de Notícias, página 21, intitulado: "Je suis: mulher em trevas de Afeganistão".
No século passado, antes da fatídica ascensão dos talibãs, a mulher afegã adquiriu o direito ao voto (nos anos 20) e o direito à igualdade de género (nos anos 60). Em 1977 as mulheres representavam mais de 15% do órgão legislativo mais poderoso do Afeganistão, estimando-se, ainda, que no início dos anos 90, 70% dos professores, 50% dos funcionários públicos e dos estudantes universitários e 40% dos médicos em Cabul eram mulheres (Comissão sobre a Situação da Mulher, ONU). Em 1996 teve lugar a trágica conquista da capital pelos talibãs a que se seguiu a contínua implementação de normas e orientações em clara contravenção dos direitos fundamentais das mulheres afegãs, que se viram privadas de direitos e liberdades basilares (como, por exemplo, a liberdade de expressão e de circulação, o direito ao trabalho, à educação, a cuidados de saúde, à integridade física e até à vida). Os atentados, flagrantes e avassaladores, incluíram como sabemos código de indumentária (por exemplo, burka e calçado que permitisse caminhar silenciosamente) e de comportamento (por exemplo, saídas só com familiares do sexo masculino sob pena de fustigação ou de apedrejamento, vidros com janelas pintados para impedir visualização da mulher afegã em sua casa, estupro, sequestro e casamento forçado).
Golias (termo que emprego para indicar, apenas, o poder, a autoridade e a influência da parte em questão) apareceu em 2001, com a queda das Twin Towers, que levou os EUA a concluírem, entre outras coisas, que a mulher afegã subjugada que estava a um sombrio apartheid de género requeria a protecção da comunidade internacional. Golias actuou incisivamente e em 2003 foi ratificada a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, em 2004 a Constituição estabeleceu no seu artigo 22 o princípio de igualdade de género e em 2009 foi aprovada a Lei para a Eliminação da Violência contra as Mulheres que proibiu 22 crimes (incluindo estupro, espancamento e casamento forçado). Neste contexto a mulher afegã readquiriu, finalmente, ainda que sobretudo nos meios urbanos, direitos e liberdades fundamentais. A expectativa de vida da mulher afegã passou de 56 para 66 anos e abriram-se-lhe múltiplos caminhos profissionais (tornaram-se advogadas, juízas, médicas, professoras, engenheiras, atletas, activistas, políticas, embaixadoras, jornalistas, empreendedoras, polícias, militares, etc.) de tal modo que, em 2020, 27% dos assentos parlamentares eram por elas ocupados (Banco Mundial, Amnistia Internacional).
Eis que Golias decide sair. Bem sabemos que se trata de um Golias enfraquecido política e economicamente e que actores mais fortes, como a China, eclodiram. É difícil, todavia, justificar a assinatura de um dramático acordo com os tenebrosos talibãs que deixa o destino da mulher afegã dependente de negociações domésticas (leia-se: da boa vontade dos inclementes talibãs). Tem cabido ao embaixador interino dos EUA, em Cabul, Ross Wilson, suprir esta grave lacuna diplomática por meio de Tweets que revelam a sua genuína consternação: já alertou para a crescente violência dos talibãs, constatou a corrente e impune violação de direitos fundamentais e solicitou aos talibãs que agissem de boa fé. Os talibãs ou não leram os Tweets ou ignoraram os apelos neles contidos. O que é certo é que em Junho a missão da ONU no Afeganistão reportou que o número de mulheres afegãs mortas e feridas nos primeiros seis meses de 2021 montava ao dobro do número registado em 2020 (para o mesmo período). E em Julho, os talibãs que assumiram o controlo de Badakhshan e de Takhar emitiram uma ordem segundo a qual os líderes religiosos locais teriam de fornecer uma lista de raparigas com mais de 15 anos e de viúvas com menos de 45 anos para “casamento” com talibãs combatentes (Hindustan Times) - um crime de guerra atento o facto de que a IV Convenção de Genebra e o Protocolo Adicional II exigem protecção para as mulheres e crianças contra a violação, prostituição forçada e qualquer outra forma de atentado ao pudor. Trata-se de um alerta do que está por vir e um lembrete do regime brutal que vigorou entre 1996 e 2001.
A verdade é que sem a intervenção da comunidade internacional a catástrofe humanitária será inevitável, com presumíveis repercussões pela região fora e para além desta. O mundo não pode, nem tem, de olhar para o lado enquanto os talibãs avançam. Os EUA e a União Europeia continuam a ser a maior fonte de ajuda económica e humanitária ao Afeganistão, assim mantendo um certo grau de influência que pode e deve ser usado para bons fins. Designadamente devem deixar claro que a falha sistemática na defesa de direitos fundamentais mínimos da mulher afegã, consagrados que são em instrumentos internacionais, levará à retirada de assistência económica, no todo ou em parte – condição que requer um sistema de monitorização de cumprimento desses direitos. Caso contrário, a mulher afegã não resistirá às trevas de um regime cruel, feroz, atroz e desumano, cuja escuridão começa de novo a cobrir o país. Se a comunidade internacional permanecer imóvel, o destino da mulher afegã será infame e intolerável, reduzido a uma prisão de tecido que representa acima de tudo uma prisão física e moral - infernal, insuportável, inaceitável e inadmissível.