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Que futuro queremos para as Ordens Profissionais?

Patricia Akester • out. 17, 2021
Partilho artigo hoje publicado no Diário de Notícias, página 14, em co-autoria com Filipe Froes, intitulado «Que futuro queremos para as Ordens Profissionais?»

“Não há tirania maior do que aquela que é perpetrada sob o escudo da lei e em nome da justiça.” (Barão de Montesquieu)

Num Estado democrático a lei encontra a sua justificação no bem comum, isto é, no “bem de uma sociedade e simultaneamente no bem das pessoas que vivem nessa sociedade” (José de Oliveira Ascensão). Cremos que este princípio basilar não foi cumprido na passada 4ª feira, 12 de Outubro, dia em que o Plenário da Assembleia da República votou e aprovou na generalidade uma profunda alteração da Lei-Quadro das Ordens Profissionais. O processo teve contornos nem sempre claros, inclui normas desconcertantes (por exemplo, pode colocar ao serviço da população advogados e médicos sem qualificações), gerando naturalmente sentimentos de inquietação e de perplexidade e sendo pertinente perguntar se a alteração legislativa divulgada assegura, protege e tutela o bem comum.

Antes de mais, em termos cronológicos, esta odisseia começou de modo furtivo e encoberto nas páginas escondidas do Plano de Recuperação e Resiliência nas quais o Governo propôs certas alterações ao estatuto das Ordens Profissionais. 

Em segundo lugar, a lamentável reforma legislativa em causa não é, ao contrário do que os seus proponentes têm declarado, imposta por certa directiva da União Europeia e por determinados relatórios da OCDE e da Autoridade da Concorrência. Na realidade, a Directiva relevante (a Directiva 2018/958/EU atinente a um teste de proporcionalidade a realizar antes da aprovação de nova regulamentação das profissões) foi transposta pela Lei 2/2021, de 21 de Janeiro pelo que nada mais há a fazer e os relatórios referenciados apenas contêm dicas e sugestões, isto é, não obrigam nem fundamentam as imprudentes alterações em jogo. 

Em terceiro lugar, decorre da dita reforma a eliminação da autonomia, da independência e da liberdade das Ordens Profissionais, que passarão a ser controladas pelo Estado. Recorrendo ao exemplo das Ordens dos Advogados e dos Médicos, notamos que a Ordem dos Advogados é uma associação pública com 95 anos de idade que tem desempenhado as suas funções de forma independente e autónoma em relação ao Governo. É Membro Honorário da Ordem da Liberdade e desde a sua criação que tem sido bastião dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos - mesmo perante regimes adversos. Subsequentemente outras Ordens foram criadas, como a Ordem dos Médicos, em 1938, Ordem esta que é o garante da certificação e qualificação técnico-científica dos seus profissionais, assente na independência, idoneidade, integridade, responsabilidade e autonomia técnica de uma metodologia de validação e escrutínio por pares. Um processo complexo, porém, indispensável à qualidade e segurança dos actos médicos prestados à população. A título ilustrativo, recordemos a indispensável actuação da Ordem dos Médicos na minimização do impacto da pandemia na população. Entre outras coisas, a Ordem dos Médicos foi a primeira entidade a propor a criação de grandes centros de vacinação ainda em Dezembro de 2020, tendo ainda contribuído directamente, em colaboração com as Forças Armadas, para a inoculação inicial de todos os médicos não englobados na vacinação prioritária dos profissionais de saúde do SNS – o que só foi possível graças à sua independência e à sua autonomia técnica.

Em quarto lugar, recorrendo de novo ao exemplo das Ordens dos Advogados e dos Médicos, a referida reforma permitirá que profissões como a Advocacia e a Medicina fiquem nas mãos de pessoas que, em comparação com o que é normal e usual na União Europeia, não preenchem requisitos mínimos em sede de formação académica e deontológica – com potencial grave lesão para os cidadãos. O estabelecimento de um padrão medíocre no que toca à qualidade da formação académica e deontológica dos profissionais da Advocacia e da Medicina colocará em perigo, respectivamente, a qualidade dos serviços jurídicos prestados e dos actos médicos executados, porá em risco a qualidade da Advocacia e da Medicina e permitirá o acesso da população a cuidados jurídicos e de saúde não qualificados. Acresce uma dúvida relativa aos beneficiários dos novos preceitos. Quem usufruirá, pergunta-se, da menorização das Ordens Profissionais portuguesas em relação às suas congéneres europeias?

Estranha altura esta para semelhante reforma. Que não se entenda que a Ordem dos Advogados tem passado a pandemia a defender princípios do Estado de Direito Democrático, é compreensível porque os temas legislativos são por vezes um pouco herméticos. No entanto, não é possível estar alheio ao exemplo louvável dos Médicos, devidamente qualificados, que têm combatido a COVID-19, corajosamente, até à exaustão, com risco e sacrifico próprios, em nome da salvaguarda da vida humana e que não devemos senão aplaudir, elogiar e louvar de forma sentida. Tornou-se mais óbvio que nunca que o País precisa de confiar nestes profissionais e que as respectivas Ordens têm de poder assegurar e monitorizar a qualidade dos seus membros e de agir com liberdade, independência e autonomia - sem pressões externas de qualquer natureza.

Paradoxal é, ainda, que uma reforma legislativa que representa forte ameaça para os cidadãos, seja abraçada pelos seus paladinos em nome desses mesmos cidadãos. A verdade é que num Estado democrático há que justificar a emanação de legislação, ainda que, pelo visto, a explicação seja miragem ou diversão, ainda que para esse efeito se invoque o nome da nação em vão. A reforma mencionada é feita em nome da população, mas não a serve, nem beneficia – muito pelo contrário. Concentra mais poder no Estado, impede as Ordens de cumprirem a sua Missão (o que nos casos acima aludidos da Justiça e da Saúde causa preocupação e consternação a muitos), prosseguindo um caminho deveras perturbador e inesperado que não serve nem de perto nem de longe o bem comum.  

Regressemos, por fim, à questão que dá título a este artigo (que futuro queremos para as Ordens Profissionais?) realçando, inelutavelmente, que a resposta deve ter em consideração, parafraseando El-Rei Dom João II, o Príncipe Perfeito, que Ordens fracas tornam fracas profissões fortes e indispensáveis ao desenvolvimento do país. Concluímos estar perante um risco com consequências nefastas e mal caracterizadas para as Ordens Profissionais, para os cidadãos cujo bem a lei deve servir e para o futuro de Portugal. 

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