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Retórica comunitária em tempos de pandemia: do impulso nacionalista para uma visão solidária

Patricia Akester • nov. 16, 2021

Partilho artigo hoje publicado no Diário de Notícias, página 7, com chamada ma capa, em co-autoria com Filipe Froess, intitulado «Retórica comunitária em tempos de pandemia: do impulso nacionalista para uma visão solidária».


“A força do grupo reside na força de cada um dos membros. A força de cada um dos membros assenta na força do grupo.” Phill Jackson (célebre treinador dos Chicago Bulls)

 

Decretada a pandemia, a 11 de Março de 2020, os Estados Membros da União Europeia (UE) sucumbiram, em primeira instância, a um instinto proteccionista sob a forma de medidas que contemplavam a respectiva nação e não a UE no seu todo. São exemplo de providências nacionalistas, que surgiram à laia de manta de retalhos comunitária no combate à COVID-19: a proibição da exportação de equipamento médico para outros Estados Membros, as tentativas de aquisição unilateral de vacinas, o estabelecimento de regras de saúde pública variadas para redução das cadeias de contágio causando alguma desorientação à população comunitária, a definição de uma panóplia de estratégias de vacinação que conduziu a velocidades diversas na cobertura vacinal da UE, a implementação de aplicações de contact tracing cuja portabilidade se encontrava limitada ao país de origem e a imposição de restrições de circulação entre Estados Membros desnecessariamente complexas, divergentes e descoordenadas.

Na raiz do problema está o facto de que regendo tanta matéria que antes era soberanamente determinada por cada Estado Membro, a UE remete para as políticas nacionais estratégias de saúde (as quais são alvo de vaga concertação nos conselhos) ocupando-se apenas de temas relativamente secundárias (como as terapias alternativas). Quando se tornou claro que os Estados Membros por si só não chegariam longe, o conceito de solidariedade como pilar fundamental da cooperação europeia foi usado no âmbito de uma narrativa política que visou legitimar a acção comunitária em face da crise pandémica. Surgiram, nesta senda, várias iniciativas ad hoc da Comissão Europeia, designadamente nas áreas da saúde e da economia. Seguem alguns exemplos.

·      Vacinas e testagem - A UE financiou projectos de investigação nos campos da testagem e da descoberta da vacina, adoptou um programa conjunto de aquisição de vacinas (que conta até à data com cerca de 4,6 mil milhões de doses de vacinas, assim garantindo a vacinação de toda a população comunitária, incluindo a administração de vacinas de reforço) e actuou de forma coordenada no que toca à sua produção e distribuição em massa (Conselho da Europa);

·      Equipamento médico - Com o apoio da UE, a Alemanha, a Roménia, a Dinamarca, a Grécia, a Hungria e a Suécia ficaram responsáveis ​​pela criação de uma reserva de equipamento médico de emergência, equipamento esse a ser distribuído a pedidos dos Estados Membros. Por exemplo, à Itália e à Espanha, os Estados Membros mais atingidos aquando do registo da primeira onda pandémica na UE, foram atribuídas 316 000 máscaras (FFP2 e FFP3) e a França, que enfrentou uma das taxas de contágio mais elevadas na UE em Novembro de 2020, obteve 500 000 pares de luvas destinadas aos seus profissionais de saúde (Conselho da Europa);

·      Assistência bilateral - Indo além da acção da UE, os Estados Membros cooperaram a nível bilateral. Por exemplo, quando a terceira vaga da pandemia colocou Portugal no limite da sua capacidade hospitalar, a Alemanha enviou, para Portugal, 26 profissionais de saúde e material médico, compreendendo 50 ventiladores (dos quais 40 portáteis), 150 bombas de perfusão e 150 camas hospitalares (Agência Lusa);

·      O regresso a casa - Aquando do encerramento inicial de fronteiras e cancelamento de tantos voos internacionais, foi dada aos cidadãos da UE a possibilidade de solicitarem apoio na embaixada ou no consulado de qualquer outro país da UE, tendo ainda sido montada uma operação que incluiu mais de 400 vôos, parcialmente financiada pela UE, que possibilitou o regresso a casa de mais de 650 mil cidadãos comunitários (Conselho da Europa);

·      Recuperação e Resiliência - A natureza exógena da crise permitiu que a UE desencadeasse mecanismos de solidariedade na área económica. Ao contrário da crise do Euro, que foi imputada a alguns Estados Membros, desta feita nenhum Estado Membro podia ser responsabilizado pelo vírus nem pelas suas trágicas consequências socioeconómicas. Como tal, a UE mobilizou os meios ao seu dispor para mitigar o impacto da pandemia, tendo concebido o Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR) que comporta cerca de 723,8 mil milhões de Euros para investimentos e reformas nos Estados Membros. Portugal como sabemos arrecadará 45,1 mil milhões de euros em transferências nos próximos 7 anos (no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência - PRR);

·      Certificado digital da UE - Desde o seu lançamento em toda a UE, a 1 de Julho de 2021, o Certificado Digital COVID da UE proporcionou o retorno à livre circulação de pessoas na UE e agilizou, ainda, o processo ao dispensar, em princípio, os titulares de um certificado válido das obrigações de testagem e de confinamento;

·      European Health Emergency Preparedness and Response Authority (HERA) - A UE instituiu, ainda, para benefício de todos os Estados Membros e do mundo uma nova entidade, a HERA, que terá um papel fundamental no plano da vigilância e da resposta a ameaças em saúde. Trata-se de um dos passos mais significativo e determinante no combate a futuras ameaças neste contexto, incluindo próximas pandemias.

Conclusões

A noção de solidariedade tem sido invocada pelos decisores políticos da UE para legitimar cruciais decisões e acções conjuntas no combate à pandemia - como as acima indicadas. A questão é se os mecanismos serão suficientes a longo prazo. Um estudo publicado em Setembro deste ano pelo European Council on Foreign Relations, revela um conto de duas pandemias. Por exemplo, na Suécia, na Dinamarca, na França, na Holanda, na Áustria e na Alemanha, a generalidade dos entrevistados afirmou que nem eles nem os seus entes queridos haviam sido pessoalmente afectados por doenças grave, luto ou dificuldades económicas, enquanto a maioria dos entrevistados em países como a Bulgária, a Hungria, a Polónia, a Espanha e Portugal forneceu um quadro bem diferente e sinistro. Prevê-se a possibilidade de a pandemia agravar a já considerável desigualdade socioeconómica entre os 27 Estados Membros, afectando a coesão na UE e exigindo renovados mecanismos de apoio. Contudo, findo o pânico que induziu a invocação da solidariedade como ferramenta retórica para viabilizar acções indispensáveis no combate à pandemia, a implementação de medidas semelhantes a longo prazo poderá ser controversa e contestada. Há que lembrar aqui que “sem solidariedade não haverá coesão, sem coesão haverá descontentamento e a credibilidade do projecto europeu será lesada.” (Pedro Sánchez, primeiro-ministro espanhol). Dito isto, esclareceu-se, definitivamente a importância da adesão de Portugal à UE. Onde estaríamos hoje em plena pandemia, se estivéssemos sozinhos, fora da UE, e que plano teríamos a curto e médio prazo para efeitos de recuperação?


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