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Um russo louco, uma promessa comunitária e uma “união de pessoas”

Patricia Akester • mar. 18, 2022

Partilho um artigo meu hoje publicado no Diário de Notícias, página 14, intitulado «Um russo louco, uma promessa comunitária e uma união de pessoas».


“A paz mundial não poderá ser salvaguardada sem esforços criativos à medida dos perigos que a ameaçam” (Declaração Schuman, 1950)

 

A Ucrânia revestiu certa invisibilidade para a União Europeia (UE) na primeira década da sua independência, alvo de um vago Acordo de Parceria e de Cooperação celebrado em 1994 - que a UE assinou, de resto, com outros estados independentes que emergiram com o final da Guerra Fria, a desagregação do bloco soviético e a reconfiguração do mapa geoestratégico a Leste. A verdade é que a abertura da Ucrânia ao Ocidente consistiu até 2004 em realidade incerta, fruto de um regime presidencialista relativamente autoritário, que permitiu a formação de grupos oligárquicos dotados de influência económica e política. Não foi por acaso que o país surgiu no radar político da UE em 2004, ano que assistiu ao alargamento da União (que passou a integrar o Chipre, a Eslováquia, a Eslovénia, a Estónia, a Hungria, a Letónia, a Lituânia, Malta, a Polónia e a República Checa) e à chamada “Revolução Laranja Ucraniana” que rejeitou o regime autoritário, exigindo democracia e transparência institucional.

O processo de introdução do elemento democrático tem-se revelado moroso – a subsistência de corrupção e de outra actividade ilícita, de conhecimento público, não tem ajudado – e só quando o Acordo de Associação Ucrânia-UE foi assinado em 2014 (entrou em vigor em 2017) foi institucionalizada a relação entre a Ucrânia e a UE.

A invasão russa e o pragmatismo europeu

8 anos depois, coube à Rússia assegurar – da pior forma possível – a máxima visibilidade da Ucrânia no plano internacional. A invasão russa, o maior ataque a um estado europeu desde a Segunda Guerra Mundial, destruiu a ordem criada a partir das cinzas desse conflito e do colapso da União Soviética em 1991, obrigando a UE a ponderar sobre a sua razão de ser, identidade, papel, robustez, influência, abrangência e metodologias. Processo nada fácil e que já gerou cisões internas no âmbito do pedido de adesão à UE (de preferência à velocidade da luz) apresentado pelo Presidente Volodymyr Zelensky.

Sabemos que o Tratado da UE não contempla uma espécie de fast track para fins de adesão à UE e mesmo que o fizesse outras questões já foram apontadas, como as que seguem:

•       A veloz adesão da Ucrânia à UE poderá causar mau estar com os países candidatos à adesão que se encontram há muito na fase de transposição da legislação europeia para o seu direito nacional (Albânia, Montenegro, Macedónia do Norte, Sérvia e Turquia) e com os países potencialmente candidatos que, segundo a UE, ainda não satisfazem as condições requeridas para aderir (Bósnia-Herzegovina e Kosovo);

•       A Ucrânia conta com uma população de mais de 40 milhões de habitantes, o que lhe conferirá um grau de influência no Parlamento e no Conselho (onde os lugares são atribuídos de acordo com a dimensão demográfica) que não agradará a todos;

•       O pano de fundo territorial da Ucrânia inclui uma Crimeia anexada pela Rússia e um conflito com separatistas em Donbas, enquanto os candidatos à adesão devem ter fronteiras claramente definidas e consolidadas;

•       A adesão à UE encontra-se intrinsecamente dependente de certas balizas democráticas. Ora, na Ucrânia tem subsistido, segundo várias fontes, um nível de liberdade apenas “parcial" (Freedom House), um regime político “híbrido” (The Economist), o controlo dos meios de comunicação social por oligarcas (Reporters Without Borders) e níveis de corrupção mais elevados que na Rússia (Transparency International);

•       Last but not least a adesão da Ucrânia à UE desencadeará o pacto de defesa comunitário, aumentando o risco de um conflito bélico em larga escala. É claro que a UE poderia excluir a Ucrânia do referido pacto de defesa, mas tal destituiria de sentido o pedido de adesão.

Uma promessa comunitária

Não se assistiu da parte da UE a uma rejeição expressa (muito mau seria dadas a trágica conjunção e o respeito e a admiração que Zelensky inspira), contudo a adesão plena está, por ora, fora de questão. A UE é uma máquina pesada e o processo de adesão é complexo, exigindo o cumprimento dos critérios de Copenhaga e a adopção do gigantesco acervo legislativo comunitário.

Já a célere concessão à Ucrânia do estatuto de país potencialmente candidato ou de país candidato à adesão consiste num passo lógico, na sequência do Acordo de Associação Ucrânia-UE, não se deparando com obstáculos legislativos e sim circunstâncias extraordinárias e simbolizando um compromisso de longo prazo, por parte da UE, para com uma Ucrânia soberana.

Trata-se, todavia, de um precedente que alguns EMs podem não estar dispostos a aceitar. Isto é, apesar da declaração de Versailles alguns EMs mantêm uma postura cautelosa.

Paz e neutralidade

Coincidência ou não, ao previsível incumprimento da declaração de Versailles segue-se o anúncio de um possível armistício entre a Rússia e a Ucrânia que tem por base, segundo o Financial Times, 15 pontos (uns mais difíceis de digerir que outros) designadamente a neutralidade ucraniana nos moldes sueco ou austríaco. Significa isto que não podendo aderir à NATO a Ucrânia ficaria livre para prosseguir a sua adesão à UE, tal como previsto na respectiva lei constitucional.

União entre as pessoas e não Estados” (Jean Monnet)

Neste contexto (e tendo em conta que a Ucrânia ainda tem um longo caminho pela frente no sentido de cumprir os requisitos de adesão) a UE pode optar por uma outra forma de expressão de solidariedade para com um povo lavado em sangue. A UE pode atribuir aos ucranianos alguns dos principais benefícios da adesão antes da sua ocorrência, como o direito de livre circulação e residência no território dos EMs, que lhes permitirá procurar emprego e residir em qualquer país da UE. E em termos práticos, para não perder o seu “Norte” processual, a UE pode reservar-se o direito de eliminar ou retirar os direitos granjeados se, findo certo período de tempo, as reformas necessárias para o cumprimento do processo de adesão não forem implementadas – sendo que finda a guerra, primordial será prestar auxílio ao país em sede de reconstrução.

Conclusões

Para Putin a Ucrânia não consiste em Estado soberano. Putin actua com base em conceitos muito dele (que reiterou recentemente) como a indivisibilidade e a integridade do património histórico russo, a unificação espiritual baseada no cristianismo ortodoxo russo e a força interna alicerçada na “verdadeira soberania” sem a qual a Rússia se dissolverá sem deixar vestígios. O russo louco tem uma visão própria de “soberania”, tentando reconfigurar a ordem europeia, alargar a sua esfera de influência e reclamar, pelo menos em parte, um império que já não é.

Consequentemente, a sobrevivência da Ucrânia como Estado independente e democrático é crucial não apenas para essa nação – e o comovente apelo de Zelensky perante o Congresso norte-americano revela que não pretende sucumbir sem mais - como para a manutenção da matriz democrática europeia.

A invasão russa levou a UE a repensar, entre outras coisas, a defesa comum e políticas económicas e energéticas. Há agora que reflectir sobre o processo de adesão e o potencial estabelecimento, em primeira instância, de uma “união entre pessoas e não de Estados” que se poderá vir a traduzir numa nova vertente da política de alargamento da UE. Zelensky tem um sonho, assim afirmou perante o Congresso norte-americano, um sonho que tem por base uma necessidade de ajuda bem premente e que deve contar, entre outras coisas, com essa vertente.


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