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Uma nova pandemia chamada Putin e seis constatações

Patricia Akester • mar. 02, 2022

Partilho um artigo meu que hoje foi publicado no Diário de Notícias, página 10, intitulado «Uma nova pandemia chamada Putin e seis constatações».


“Uma organização mundial foi erguida com o propósito primordial de prevenir a guerra, a ONU (…) Devemos ter a certeza de que o seu trabalho é frutífero, que é uma realidade e não uma farsa, que é uma força para a acção e não apenas uma espuma de palavras.“ (Winston Churchill)

 

No dia 24 de Fevereiro fomos pulverizados pela invasão de um Estado soberano; subjugados por uma guerra no espaço europeu. A intervenção militar da Rússia na Ucrânia revelou claro desprezo pelo Direito Internacional e pelos princípios que regem a Organização das Nações Unidas (ONU), em nome de interesses geoestratégicos. Examinada a matéria de facto e de direito disponível, chego às seguintes constatações. algumas deveras perturbadoras.

 

Constatação nº 1: Os moldes de funcionamento do Conselho de Segurança da ONU não honram a democracia

A título de exemplo, a invasão do Kuwait pelo Iraque foi alvo de uma resposta internacional robusta porque o CSNU (órgão ao qual a Carta das Nações Unidas confere o direito de levar a efeito a acção militar que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais) agiu e a anexação falhou.

No caso ucraniano, a Rússia como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), detém direito de veto, direito esse que não hesita em utilizar para boicotar qualquer acção que não lhe convém. Já em 2014 Putin exerceu com vigor o poder de veto russo. Aliás, anexada a Crimeia, a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) aprovou uma resolução que exortava apenas os Estados membros a não reconhecerem qualquer alteração ao status da República Autónoma da Crimeia e da cidade de Sebastopol (A/RES/68/262 de 27.3.2014), mas o CS não conseguiu adoptar uma resolução de conteúdo semelhante dada a abstenção da China e o veto da Rússia.

 

Constatação nº 2: A Carta das Nações Unidas deve prever que qualquer membro que é parte numa controvérsia se absterá de votar

Foi precisamente na sequência de inúmeros casos de abstenção e de uso abusivo do direito de veto pelos membros do CSNU que a AGNU concebeu um mecanismo (através da Resolução da Assembleia Geral 377A(V)) denominado “Unidos pela paz”. Esse mecanismo atribuiu à AGNU competência para fazer, aos Estados membros, recomendações apropriadas sobre as medidas colectivas a tomar, incluindo (tratando-se de uma ruptura da paz ou de um acto de agressão) o emprego da força armada para restabelecer a paz e a segurança internacionais. E foi esse mecanismo que (em face do veto exercido pela Rússia no dia 25 de Fevereiro) permitiu que tivesse lugar uma reunião de emergência da AGNU no 5º dia do confronto.

Em bom rigor, por um lado, a Resolução da Assembleia Geral 377A(V) é, salvo melhor opinião, contrária à Carta e, por outro lado, a AGNU pode recomendar, mas não impor resoluções (ao contrário do CSNU). Como tal, no dia 28 de Fevereiro a ONU fez o que estava ao seu alcance para actuar, como diria Churchill, como “Templo da Paz”. O Secretário-Geral proclamou, então, inequivocamente, que a invasão da Ucrânia é inaceitável, os líderes devem avançar para a paz e o direito internacional deve ser cumprido – o que passa pelo respeito pela soberania, pela independência e pela integridade territorial da Ucrânia. E a resolução emergente, embora desdotada de valor vinculativo, terá valor declarativo não despiciendo de interesse.

Reconheçamos que nos moldes actuais não é fácil para a ONU chegar a bom porto. A ONU deve ter a possibilidade de agir sem bloqueios que reflictam conflitos de interesses e, para tal, a Carta das Nações Unidas deve ser revista (ou outro mecanismo configurado) garantindo que, seja qual for o tema, qualquer membro permanente do CSNU que seja parte numa controvérsia se absterá de votar. Por ora, temos uma resolução que monta a 1950 para combater, minimamente, a paralisação institucional, que de outra forma surgiria e que esvaziou de sentido a antiga Sociedade das Nações.

 

Constatação nº 3: O direito internacional não impede que outros Estados ajudem a Ucrânia

A invasão da Ucrânia viola claramente o artigo 2(4) da Carta das Nações Unidas, que veda o recurso à ameaça ou ao uso da força, contra a integridade territorial ou contra a independência política de um Estado. Segundo o artigo 51 dessa Carta, a Ucrânia - Estado membro da ONU - tem o direito inerente de legítima defesa individual (que está a exercer com coragem, firmeza e hombridade) ou colectiva.

Se a Ucrânia fosse membro da NATO (algo que continua a requerer ao dia de hoje), o referido direito de legítima defesa adquiriria instantaneamente contornos colectivos e a NATO seria obrigada, em paralelo com as forças militares ucranianas, a afastar a agressão russa. Não sendo a Ucrânia membro da NATO, a ajuda internacional consiste em imperativo ético.

 

Constatação nº 4: Os aliados têm várias medidas à sua disposição

A dissuasão falhou, as forças militares russas invadiram a Ucrânia e os seus aliados têm à sua disposição várias armas, como as seguintes, algumas das quais já foram utilizadas:

·      Implementar severas sanções económicas e financeiras contra a Rússia, incluindo embargos comerciais e aéreos, congelamento de bens e o famoso corte relativo ao sistema SWIFT;

·      Conceder à Ucrânia um quadro de apoio que deve incluir, entre outras coisas, material bélico (para fins aéreos, navais, terrestres, cibernéticos etc.,), informação estratégica, assistência humanitária (alimentos, medicamentos, cuidados de saúde, ajuda a refugiados, etc.) e apoio energético, financeiro e económico;

·      Retratar com precisão nos mass media o desenrolar dos acontecimentos;

·      Documentar quaisquer crimes de guerra infligidos ao povo ucraniano e fornecer tal informação a organizações não governamentais e, sobretudo, ao Tribunal Penal Internacional, finda a guerra;

·      Prestar apoio, a longo prazo, à resistência ucraniana; e

·      Garantir, numa Ucrânia eventualmente ocupada, a manutenção da sua identidade nacional, incluindo o seu idioma.

 

Constatação nº 5: Avista-se uma nova cortina de ferro

A ocupação da fronteira ucraniana pela Rússia invoca, conceptualmente, a Cortina de Ferro (com fortes ramificações) lembrando um discurso proferido a 5 de Março de 1946 por Winston Churchill. O ex primeiro-ministro britânico falou, então, em guerra, tirania, pobreza e privação e usou a expressão “cortina de ferro” (iron curtain) - que passou a descrever a divisão da Europa em 2 partes: a Oriental (controlada pela então União Soviética) e a Ocidental (sob influência americana).  Afirmou sem pudor: “De Estetino, no (mar) Báltico, até Trieste, no (mar) Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o Continente. Atrás dessa linha, estão todas as capitais dos antigos Estados da Europa Central e Oriental (…) e todas estão sujeitas, de uma forma ou de outra, não somente à influência soviética, mas também a um forte, e em certos casos crescente, controlo de Moscovo.“

 

Constatação nº 6: Uma abordagem aparentemente cautelosa pode ser perigosa a longo prazo.

Putin pretende infatigavelmente (talvez misto de nostalgia e de narcisismo) restaurar um império que já não é. Os paladinos da democracia podem sucumbir, com mais ou menos doçura, a estes ímpetos ou tentar refreá-los. O facto de que Putin rege uma potência nuclear é inegavelmente assustador. Todavia, a crise da Ucrânia viola declaradamente o direito internacional e desafia os princípios da Carta das Nações Unidas e como bem disse Churchill, “se as democracias ocidentais se dividirem ou vacilarem nos seus deveres (…) a catástrofe pode dominar-nos a todos.”

 

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