Blog Post

A desinformação ao serviço da morte, do lucro e do cancelamento reputacional: factos e recomendações

Patricia Akester • set. 07, 2022

Partilho artigo hoje publicado no Diário de Notícias, página 15, em co-autoria com  Filipe Froes, intitulado «A desinformação ao serviço da morte, do lucro e do cancelamento reputacional: factos e recomendações» sobre disfunções que hoje subsistem no campo da difusão de informação,  invocando os exemplos de Lisa-Maria Kellermayr, Sandy Hook Elementary School e Sanna Marin.


«Informação é poder. Desinformação é abuso de poder» (Newton Lee, cientista)

 

Lisa-Maria Kellermayr, Sandy Hook Elementary School e Sanna Marin são nomes que ilustram algumas das disfunções que hoje subsistem no campo da difusão de informação, disfunções essas que abarcam, segundo terminologia do Parlamento Europeu e sem correspondência na língua portuguesa, três conceitos: misinformation (que assenta na disseminação de informação falsa sem intenção de prejudicar), desinformation (que consiste na divulgação de informação falsa ou imprecisa com a intenção deliberada de manipular e/ou de induzir em erro) e malinformation (que se traduz na transmissão de informação genuína com fins dolosos).

 

Lisa-Maria Kellermayr, uma médica austríaca que enfrentou meses de ameaças, intimidação e perseguição às mãos de negacionistas da pandemia e de adeptos de teorias conspiratórias, sucumbiu à onda de ódio que se formou à sua volta e suicidou-se. Não se sentiu, assim afirmou em entrevista, apoiada pelas autoridades.

 

Na sequência do tiroteio que teve lugar na Sandy Hook Elementary School nos EUA, no qual pereceram 20 alunos e 6 professores, os pais das crianças falecidas enfrentaram não apenas a penosa morte dos filhos como também uma campanha de difamação orquestrada e divulgada por Alex Jones em programa radiofónico norte-americano intitulado The Alex Jones Show. Difundiu este último, através de tal programa, que o horrendo incidente fazia parte integral de um plano governamental que visava a apreensão de armas e do qual as famílias das vítimas eram cúmplices. Seguiu-se uma acção judicial na sequência da qual foi determinado que Alex Jones teria de pagar a Neil Heslin e Scarlett Lewis, os pais de Jesse Lewis, uma das vítimas, USD 45,2 milhões a título de danos punitivos (assim punindo o lesante), para além de USD 4 milhões a título de ressarcimento previamente atribuídos (assim compensando ou reparando o dano).

 

Sanna Marin, a primeira-ministra finlandesa que ousou divertir-se num ambiente privado e cujos momentos de lazer foram filmados por terceiro e disseminados pelo mundo fora sem sua autorização, foi alvo de polémica, de críticas e de manifestações de apoio. Trata-se da mesma Marin que granjeou forte aprovação e admiração na esteira da sua gestão da situação pandémica a nível doméstico e do seu determinado pedido de adesão à NATO em face da invasão russa da Ucrânia, assim pondo fim a décadas de neutralidade e de não alinhamento com um país com o qual partilha uma longa fronteira, em relação ao qual apenas adquiriu independência em 1917 e cujo exército repeliu duas vezes durante a Segunda Guerra Mundial.

 

Estes distúrbios informacionais tendem a ser publicados em redes sociais e a irradiar-se quais vírus, com mais rapidez e atingindo uma audiência vastamente mais ampla do que a verdade (Science). Os motivos que regem a sua propagação incluem, entre outros, a obtenção de lucro e o cancelamento reputacional induzido, por exemplo, por factores ideológicos ou políticos. A oportunidade de lucrar com a inclemente propalação de desinformação incentivou, como sabemos, a infodemia pandémica, graças sobretudo a publicidade direccionada aos respectivos utilizadores (Center for Countering Digital Hate - CCDH). Por sua vez, o cancelamento reputacional visa figuras proeminentes, podendo configurar-se como uma impiedosa arma de intimidação e de obliteração de imagem pública.

 

Recomendações

 

Não é fácil mitigar os efeitos nefastos da desinformação e de outros distúrbios verificados no âmbito da propagação de informação. Por um lado, a desinformação é transmitida com maior rapidez e amplitude nas redes sociais do que qualquer informação autêntica ou que quaisquer rectificações surgidas em função da desinformação. Por outro lado, a correcção pós-exposição (à desinformação) não desfaz inteiramente o dano causado pela mesma. Ou seja, é imperativo actuar a montante e a jusante da desinformação, com base em estratégias de prevenção, de mitigação e de combate.

 

Muito pode ser feito no plano da prevenção pelas plataformas sociais e pelos próprios utilizadores. Actualmente as grandes plataformas tendem a executar curadoria de conteúdo – o que as pode transformar, note-se, em regentes absolutos da palavra, da expressão e do discurso – esquecendo, no entanto, o modelo de negócios subjacente e os lucros daí advenientes para os lesantes e para as próprias plataformas, modelo esse que não pode permanecer cristalizado sob pena de gerar problemas recorrentes.

 

Quanto ao Estado, cabe-lhe emanar medidas legislativas que inibam a desinformação e outros distúrbios informacionais, medidas essas que devem, na nossa opinião, passar pelo estabelecimento de danos punitivos em casos de especial gravidade – assim permitindo a condenação judicial do lesante (no contexto de uma acção de indemnização civil) ao pagamento de uma quantia superior ao dano sofrido pelo lesado em virtude da conduta ilícita.

 

Trata-se de algo corrente em países como o Reino Unido e nos EUA. Todavia em Portugal apenas é previsto o ressarcimento do dano sofrido, isto é, do dano comprovadamente existente, que até pode ser futuro tendo, contudo, de ser certo (não meramente eventual) e que funciona como limite máximo da indemnização (em termos quantitativos).

 

Sucede que vivemos hoje, como vimos acima, novos desafios que justificam e demandam, mesmo, a possibilidade de recurso à figura dos danos punitivos e o consequente reforço da tutela dos direitos de personalidade (como o direito à imagem, ao nome e à privacidade) e de outros direitos imateriais. As normas jurídicas devem ser adaptadas à nova realidade e às necessidades daí emergentes.

 

É que se os danos punitivos estiveram na mesa judicial, o montante atribuído ao lesado/vítima pode ultrapassar o dano causado, adquirindo (i) uma função punitiva (ao castigar o lesante) e uma função preventiva (dissuadindo o lesante e terceiros a executar os actos em questão), (ii) incentivando o lesado a intentar acção judicial (contribuindo para o cumprimento da lei) e (iii) lembrando ao lesante e à sociedade em geral que  valores fundamentais (como a dignidade, a saúde, o bom nome, etc.) são protegidos de modo inabalável pela ordem jurídica.

 

Há que reconhecer a nível nacional, que nem sempre o direito penal é a melhor forma de regular e de dar resposta e que é necessário criar o devido espaço legislativo para a operação de sanções civis. Quando se verifica, por exemplo, uma violação do direito à honra, à imagem ou ao bom nome, a imposição de danos punitivos reforça a tutela jurídica do ser humano. Dúvidas não subsistem, certamente, de que os valores em causa merecem tutela eficaz, sobretudo perante novas realidades e novos desafios. Saibamos evoluir!

Share by: