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O seu a seu dono

Patricia Akester • ago. 01, 2022

Partilho a minha coluna de Agosto, no Dinheiro Vivo, Diário de Notícias, intitulada «O seu a seu dono».


«Le travail de l’auteur produit l’oeuvre littéraire ou artistique; L’oeuvre est faite pour l’esprit; L’esprit va vers l’infini» (Adrian Sterling,1978)

 

Há 26 anos que a minha devoção e o meu labor se centram no direito de autor, facto que leva, com alguma constância, a uma pergunta liminar: para que serve esse ramo do direito?

 

Respondo: O direito de autor tutela a Cultura, pois protege bens culturais intangíveis de natureza diversa, que vão desde as clássicas obras literárias, dramáticas, musicais e artísticas às obras advenientes da revolução digital.

 

Prossigo com ar convicto: por isso o direito de autor consiste num direito humano, princípio esse proclamado no artigo 27 (2) da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 15 do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos Sociais e Culturais e no artigo 42 da Constituição da República Portuguesa.

 

Dito isto, há quem ache bem e faça um solene brinde ao direito de autor e aos bens culturais por este tutelados, havendo todavia quem pergunte porque se deve proteger tais bens ao invés de permitir que pertençam desde logo à sociedade como um todo.

 

A pergunta carece de resposta óbvia uma vez que os argumentos que justificam a tutela da propriedade física não podem ser extrapolados para o campo do direito de autor.   

 

A verdade é que a tutela relativa a bens tangíveis tem como premissa os conceitos económicos de «escassez» (que descreve uma disparidade entre a quantidade procurada de certo produto ou serviço e o montante disponível no mercado) e de «rivalidade» (que se refere à situação em que o consumo de um bem por uma pessoa impede a fruição do mesmo bem por outra pessoa). Contudo, os bens culturais não constituem um recurso escasso ou rival, podendo ser replicados e partilhados sem que os titulares de direitos sobre os mesmos se vejam impossibilitados de usufruir deles.

 

Com efeito, no âmbito dos bens tangíveis, se A adquirir uma bicicleta e a oferecer a B, A fica sem a posse dessa bicicleta, e se C e D, arrependendo-se das respectivas decisões no que toca às bicicletas por si adquiridas, decidirem trocá-las entre si, cada um continuará a ter, na sua posse, uma bicicleta.

 

Passando, agora, ao campo dos bens intangíveis, se A compuser uma obra musical e a disponibilizar a B, tanto A como B têm acesso a essa obra, e se C e D compuserem, cada qual, uma obra musical e as disponibilizarem um ao outro, ficam com acesso não a uma, mas a duas obras musicais.

 

Como explicar, então, de forma inteligível (penso eu para com os meus botões) a concessão de protecção e a consequente imposição de um monopólio no que toca aos bens culturais (tendo em conta a referida ausência de escassez e de rivalidade)?

 

Avanço então, de forma sucinta, os seguintes argumentos:

 

·      A montante da criação intelectual, o direito de autor funciona como um mecanismo de incentivo ao processo criativo. Ou seja, o processo criativo beneficia a sociedade e o investimento requerido para a concretização desse processo requer um incentivo, o qual se consubstancia na atribuição de protecção autoral;

 

·      A jusante da criação intelectual, o direito de autor recompensa o esforço criativo que gera o bem cultural. Isto é, a sociedade recompensa o autor pelo seu esforço criativo, devido ao benefício que para aquela advém da criação intelectual sob a forma de acesso a bens culturais; e

 

·      O direito de autor protege um direito fundamental, um direito humano.

 

E quando dúvidas subsistem cito o Supremo Tribunal que tão bem transmitiu o conceito subjacente. Nas palavras do Supremo:

 

 a «obra literária, artística ou científica é um benefício para a humanidade, representando um importante factor de desenvolvimento sociocultural, assim se compreendendo que o decurso do tempo a faz reverter para o domínio público (...) Ao permitir aos autores viverem das receitas obtidas da exploração das suas obras pelo público, este sistema de remuneração dá-lhes a possibilidade de continuarem a criar. Se as suas obras obtiverem o favor do público, poderão consagrar-se inteiramente ao desenvolvimento das suas faculdades criadoras. Na ausência de protecção, não disporiam do estímulo necessário para efectuar um trabalho de que toda a sociedade beneficia» (Processo Nº 08A1920, 07/01/2008).

 

É por isso que quem ama a Cultura não entende, não consegue entender, a hesitação, as lacunas e os atrasos na sua protecção. Como bem dizia o Visconde de Almeida Garret, redactor, proponente e defensor da primeira lei nacional sobre direito de autor:

 

«É preciso armar e proteger a propriedade intelectual, propriedade essa «sacratíssima», tal como se tutela a propriedade material, porque «os direitos da inteligência, da propriedade [adquirida] pelo trabalho do cérebro não pode, não deve ser menos protegido das leis do que a propriedade que adquiriam os braços, o esforço material do corpo». (A. Garrett, Representação à Rainha, 29 de Junho de 1851).

 

Parece complicado, mas é simples …



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